Sello Oração E Caridade

Respeitável Loja de São João

Oração e Caridade nº 22

BLOG

REGIME ESCOCÊS RETIFICADO, FÉ CRISTÃ E “DOGMA”

RER-Fé Cristã e “Dogma”

Em sua carta a Bernard de Türckheim (1752-1831), de 3 de fevereiro de 1783, Jean-Baptiste Willermoz (1730-1824) adverte solenemente: “…no momento em que a religião se mistura com a Maçonaria […] se operará sua ruína…, nossos discursos oratórios se convertem em sermões, em breve nossas Lojas se tornarão igrejas ou assembleias de piedade religiosa […]. Esse perigo, meu amigo, que pode parecer quimérico, está mais próximo do que você pensa, se não se por ordem imediatamente…”(1)

Esse alerta, vital para todos, participa igualmente de uma sabedoria consequente a um assunto delicado, a da “autoridade dos dogmas” em sua relação com a fé cristã no Regime Escocês Retificado.

a) As diferentes interpretações do dogma

Como se sabe, as três confissões cristãs maioritárias (catolicismo, ortodoxo e reformado) aderem, pelo menos em princípio (sabendo que ainda existem exceções), às afirmações do símbolo de Nicéia-Constantinopla (325-381), considerado como sendo “admitido por todos”.(2)

Na verdade, o problema nasce dos diferentes tipos de hermenêutica que os teólogos têm se guiado ao longo dos séculos, dependendo das sensibilidades, dos tempos, das origens e das situações, ou das variantes que se multiplicam quase ao infinito, do que se denomina, segundo a fórmula, sem dúvida um tanto precipitada e reducionista demais, como sendo a crença “comum e aceita por todos”. Com efeito, o que há de “comum” entre as análises dos padres alexandrinos, capadócios, padres latinos, escolásticos, místicos renanos, irmãos de espírito livre, reformadores, etc., tendo um e outro uma concepção tão diferente do que deve entender-se por “Regra de Fé”?

b) Os dogmas ocultam a verdade

Assim, surgindo após as guerras religiosas do século XVIII, a corrente iluminista, com Joseph de Maîstre (1753-1821), tende a considerar que a linguagem dogmática da Igreja era, em última análise, um obstáculo à transmissão viva da fé – fé esta que Orígenes (século III) pensava que deveria apoiar-se no “conhecimento superior dos mistérios”(3) – e “oculta mais do que protege” a Revelação: “As Sagradas Escrituras: nunca houve uma ideia mais vazia do que ir buscar ali os dogmas cristãos: não há uma única linha nestes escritos que declare, ou permita perceber o projeto de fazer um código ou uma declaração dogmática de todos os artigos de fé. (…) a igreja nunca tentou escrever seus dogmas; sempre foi forçada a isso. A fé, se a oposição sofística não a obrigasse a escrever, seria mil vezes mais angélica: [a fé] chora sobre essas decisões que a sublevação lhe arranca e que sempre foram aflições… O estado de guerra ergueu esses veneráveis muros em torno da verdade: eles a defendem, sem dúvida, mas a ocultam. (…) Cristo não deixou um único escrito aos seus Apóstolos. Em vez de livros, ele prometeu a eles o Espírito Santo. ‘É ele, disse-lhes, que vos inspirará naquilo que tereis que dizer’” (4).

Participando deste estado de espírito, o Regime Escocês Retificado, que é puro produto do Iluminismo, declarando a “profissão cristã” e recebendo em seu meio apenas cristãos, resguardando-se sempre em definir o que entende sob o termo de “cristão” – exigindo simplesmente que os candidatos à admissão em suas Lojas acreditem em Deus e na imortalidade da alma, depois, em sua Ordem Interior, após uma propedêutica iniciática, um reconhecimento da “tríplice essência, potência e ação indivisível do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, e uma confissão de que Jesus Cristo é o “Verbo Divino”-, guardando absoluto silêncio sobre as modalidades da vida post mortem, e será possível compreender por quê, visto que certas instruções têm proposições contrárias às da Igreja sobre o tema da “ressurreição da carne”(5), contentando-se assim em fazer dizer aos Cavaleiros da Ordem, com prudente reserva: “Acredito na vida futura e eterna, na qual cada um receberá segundo seu merecimento” (Profissão de Fé dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa, 1784).

c) As Lojas não são escolas de teologia

O Regime Retificado, sabendo que as variantes resultantes das diferentes hermenêuticas religiosas foram produzidas por diversas interpretações do Credo ao longo dos séculos, observa um grande distanciamento diante dos “dogmas”, a ponto de proibir toda discussão sobre o assunto: “Não entregue-se com vossos Irmãos em discussões dogmáticas estéreis, ensine-os a amar e imitar nosso divino Senhor e Mestre Jesus Cristo, nosso Redentor…” (Instruções destinadas para os Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa, 1748).

Essa infinita variação nas interpretações, tão presente ao longo da história e que deu origem a tantas lutas e combates perpétuos(6), era bem conhecido e considerado pelo fundador do Regime Retificado, sendo objeto de severa advertência: “Nossas Lojas (…) nunca são escolas de teologia…, nem de outros assuntos profanos. Por outro lado, dada a diversidade de opiniões humanas de todo gênero, nossas leis tiveram que proibir qualquer discussão que perturbasse a paz, a união e a harmonia fraternal. Supondo, ainda, que o termo final da instituição maçônica pudesse dar, aos que a ela chegassem, luzes suficientes para resolver com precisão as questões e discussões religiosas que poderiam ter surgido entre os Irmãos, se eles tivessem sido autorizados a elas se dedicar, onde estaria o tribunal suficientemente esclarecido para apreciar suas decisões e fazê-las respeitar?” (J.-B. Willermoz, Ritual do Grau de Mestre Escocês de Santo André, 1809)

Conclusão

A sentença, definitiva aos olhos destes sujeitos dogmáticos e religiosos, é clara para o Regime Retificado: “Portanto, repetimos, as leis que nos proíbem expressamente toda discussão sobre estes assuntos [dogmáticos, teológicos e religiosos], são infinitamente sábios e devem ser rigorosamente observados” (Ibid.).

Desta forma, a única crença manifesta, que não é nem dogmática nem eclesial, e menos ainda segundo qualquer definição conciliar, reunindo em seu ápice os membros da Ordem (membros que constituem precisamente por esta união “a Igreja visível e invisível”) é a de Jesus Cristo: “Creio finalmente na Santa Igreja universal e apostólica, visível e invisível, dos membros unidos pela fé em nosso Senhor e divino Mestre Jesus Cristo”(Profissão de Fé dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa, 1784).

[1] Carta de Willermoz a Bernard de Türckheim (1752-1831), datada de 3 de fevereiro de 1783, in Renaissance Traditionnelle n° 35, juillet 1978, p. 179.
[2] No entanto, deve-se observar algumas reservas, pois no protestantismo os Unitaristas não reconhecem a Trindade, o que acrescenta um ponto a considerar: “Se a reforma do século XVI não desafiou os primeiros concílios ecumênicos, atualmente sua recepção efetiva causa problemas em certas Igrejas protestantes reformadas” (J.-M., Prior, Carta Ecumênica Européia: Aspectos Teológicos, in Positions luthériennes, vol. 50, no 3, 2002, p. 232). Também sabemos sobre este ponto que certas correntes da Reforma, como a Religious Society of Friends ou Quakers, sob a inspiração de George Fox (1624-1691), o Pietismo fundado por Philipp Jacob Spener (1635-1705), ou também os Plymouth Brothers sob a iniciativa de John Nelson Darby (1800-1882), notável tradutor da Sagrada Escritura (correntes partidárias da ideia de um sacerdócio universal dirigido com a ausência de clero e liturgia) recusam e rejeitam por princípio qualquer noção de “dogma”, trabalhando unicamente para se reunirem “ao redor do Senhor” entre os “irmãos”, em um espírito de pura simplicidade evangélica. (Cf. E. G. Léonard, Histoire générale du protestantisme, P.U.F., 1988).
[3] Orígenes (século III), influenciado por Filo de Alexandria (século I), considerava que cada versículo da Escritura tinha um significado oculto: “O homem espiritual, que gosta das coisas espirituais e de quem o Espírito Santo remove o véu, descobre sob a letra o alimento espiritual de sua alma” (J. Daniélou, Orígenes, Cerf, 2012, p. 289). O grande alexandrino afirmava: “É diferente conhecer a Deus do que simplesmente crer Nele” (Cf. H. Crouzel, Origens e conhecimento místico, Prefácio de H. de Lubac sj, Desclée de Brouwer, 1961).
[4] J. de Maistre, Ensaio sobre o Princípio Gerador das Constituições Políticas, § 15, P. Russand, Lyon, 1833.
[5] A doutrina final do Regime Retificado ensina uma tese constantemente condenada pela Igreja em seus concílios e por seus doutores, a saber, o anatemismo do corpo material carnal. (que reduz o homem “à condição dos mais vis animais” -sic-), produto de uma causa ocasional ou “ação secundária”: “O homem é espiritual e imortal, porque os corpos, a matéria, os animais, mesmo o homem como animal, e todo o universo criado, só podem ter uma duração temporal momentânea. Assim todos estes seres materiais, ou dotados de alma passiva, perecerão e desaparecerão completamente, sendo apenas o produto de ações secundárias, nas quais o Princípio único de toda ação vivente só cooperou por sua vontade que ordenou os atos. (…) toda forma de matéria deve infalivelmente destruir-se e decompor-se. (…) Os corpos e a matéria total sofrerão uma decomposição súbita e absoluta, para reintegrar-se (…) todo o universo será apagado tão subitamente quanto a vontade do Criador se fará ouvir; para que não reste o menor vestígio, como se nunca tivesse existido” (Instrução Secreta, B. M. Lyon, Ms. 5.475).