MARTINES DE PASQUALLY E A DOUTRINA DOS ELUS COËN
Por Jean-Marc Vivenza
Extrato de sua obra “Os Elus Coën e o Regime Escocês Retificado, Cap. 1”.
Toda a doutrina de Martines pode ser resumida em uma palavra: “Reintegração”. Reintegração dos seres devido à queda anterior que os mergulhou nas trevas do mundo e os condenou a um exílio que os isola, os separa de sua verdadeira origem. O trabalho que se impõe ao homem consiste então, para Martines, em refazer o caminho, em reencontrar a direção de seu regresso através de um conjunto de práticas, de técnicas operativas que são designadas pela palavra “teurgia”.
Deus, ensina Martines de Pasqually, é Uno, mas é “trino” de acordo com sua Potência (Pensamento, Vontade, Ação) e “quádruplo” de acordo com sua essência (Espírito Divino [10], Espírito Maior [7], Espírito Inferior [3], Espírito Menor [4]); emanou na origem os seres espirituais, e estes, pelo menos um certo número deles, devido a um orgulho desenfreado, rebelaram-se, reivindicando uma autonomia do qual não podiam pretender. Para preservar o equilíbrio divino, Deus cercou os espíritos rebeldes e os aprisionou em uma matéria criada especificamente para a ocasião pelos espíritos que mantiveram-se fiéis. Portanto, o mundo faz parte, do ponto de vista ontológico, de uma criação, consequência de uma primeira “Queda” ou “falta” inicial, e não de uma emanação, o que significa, para Martines, e isto teve a maior importância na sua visão, que é sem consistência real, sem substância, ilusória.
Deus decidiu, para reparar esta “Queda” original, emanar o homem, qualificado como “menor espiritual”, porque foi o último a aparecer no plano divino, no entanto, é dotado de privilégios elevados desde o primeiro entre os homens, Adão era um ser andrógino cuja missão era trabalhar pela preservação da ordem divina, e ao mesmo tempo participar na “reabilitação” daqueles que se distanciaram radicalmente dela. Desgraçadamente, explica Martines, Adão também mergulhou no orgulho e pretendeu ser criador, independente, reivindicando uma autonomia que não podia exigir.
Para isso, aliou-se aos demônios, perdendo desde então seu corpo glorioso e materializando-se, assim como os espíritos prevaricadores [1] anteriormente, que teve como consequência direta cortar a íntima comunicação divina com a qual Deus lhe favorecia; “Só pode ser concretizado, explicou Robert Amadou (1924-2006), através de mediações, eventualmente obtidas, de espíritos, de intermediários. Para estabelecer relações com estes, o homem, parcialmente materializado, deve utilizar procedimentos em parte materiais. A mistica foi degradada em teurgia cerimonial, ciência e sacramento. O teurgo primeiro ora, pedindo a Deus que restaure seu poder primitivo sobre os espíritos. Depois comanda os bons Espíritos e exorciza os maus. Certos sinais, às vezes luminosos, indicam o êxito [2]”.
Assim, a perspectiva escatológica na qual penetrava o maçom iniciado na “Ordem dos Elus Coën” se atribuída a esta compreensão global da história da Queda, sabendo também que o primeiro homem, Adão, não se limitou à sua falta inicial, mas a reiterou por sua debilidade para com as coisas da matéria, por sua vontade pervertida e seu apetite carnal, como consequência do qual nasceu Caim. A sua posteridade, marcada por uma degradação quase original, será incapaz de cumprir com sua missão espiritual; Caim matará seu irmão Abel, e somente Seth, filho que Adão e Eva conceberam após a morte de Abel, poderá celebrar o culto primitivo, convertendo-se logicamente no ancestral dos “operadores” e dos “teurgos”. Após o dilúvio, caberá a Noé perpetuar os descendentes de Seth, e é a esta descendência pura que os Coëns deviam imperativamente ligar-se [3].
De acordo com isto, como destacou Franz von Baader, “um dos princípios de Pasqually é que todo homem nasce profeta, forçado a cultivar nele esse dom da visão, cultura esta que devia servir precisamente a escola deste mestre [4]”, desta forma o “menor” espiritual, o “Elu Coën”, para reintegrar-se, se quisesse permanecer fiel à sua vocação sacerdotal, deveria tomar consciência do significado dos números, esforçava-se para compreender os anjos, submeter-se-ia a uma disciplina rigorosa que incluía orações frequentes, algumas proibições alimentares, uma moralidade pessoal severa e, finalmente, a celebração do culto primitivo.
[1] Em relação ao julgamento negativo de Martines com relação à “carne”, embora tenhamos detalhado extensivamente este assunto em uma obra anterior (“A natureza do pecado e da carne”, em O Martinismo, Le Mercure Dauphinois, 2006, pp 217-220) contudo, é importante recordar dois ou três elementos significativos. Confunde-se, e aí está o erro, um erro comum que sempre leva a uma grande confusão, as noções de “ordem” e “estrutura” que não são, no domínio da teologia e especialmente da filosofia, nada sobreponíveis, embora muitas vezes se combinem, como é normal nestes âmbitos, o que leva a frequentes mal-entendidos.
Assim, a lei de distinção das ordens não está de forma alguma em contradição, nem nega, de forma alguma, a forma estrutural da criatura humana, que possui, obviamente, um corpo, uma alma e um espírito que não desempenham um papel acidental no homem, mas um papel essencial, na medida em que os três participam na unidade da pessoa. Contudo, não se deve esquecer que o homem está ontologicamente situado sub a dependência de uma lei de determinação que se exerce sobre a totalidade da criação, porque se a essência, na metafísica, é potência de existir, o ato de existir se ordena segundo um ato substancial que define precisamente a essência, naturalmente, da estrutura ternária constitutiva, mas também rege a matéria do corpo; Contudo, este ato substancial constitutivo se traduz para todos os filhos de Adão, desde o trágico episódio da falta, em uma natureza histórica degradada dada como salário e punição pelo pecado.
Isto equivale a destacar que existe, portanto, ontologicamente, uma ordem natural e uma ordem sobrenatural, e historicamente, uma ordem do espírito e uma ordem da carne que se opõem e lutam entre si, porque a carne atual do homem é corrupta, está degradado, danificada pelo pecado. É por isso que é unicamente à ordem do espírito que correspondem por direito as promessas do Reino anunciadas por Cristo.
Por esta razão estamos autorizados a reconhecer, não por “dualismo”, mas por exigência evangélica, uma ordem do espírito radicalmente diferente, distinto do corpo destinado à corrupção, à morte e ao desaparecimento, corpo que recebeu esta lei de finalidade degradante após o pecado e a culpa.
Terminemos este breve texto recordando o que ensinam os Padres da Igreja sobre as consequências do pecado para os nossos primeiros parentes:
• A perda dos dons sobrenaturais e preternatural;
• O despojamento da graça santificadora, das virtudes infundidas, dos dons do Espírito Santo e do direito à felicidade do Céu;
• A retirada dos dons extra-naturais, ou seja, traduzindo com clareza, que Adão e Eva, e todos nós por herança, somos dominados pela ignorância, pela concupiscência e pela morte;
• A revolta dos sentidos e a desobediência nativa;
• A transformação do nosso corpo imortal em forma carnal e a maldição do sol (Gênesis, 3:17);
Depois da falta do primeiro homem, todos os descendentes de Adão nascem, e dizemos isso não por patologia depressiva mas por honestidade espiritual, em um estado de aversão a Deus, porque estão, por causa de seu pai, privados dos dons que Deus originalmente deu ao homem. Tal é a Verdade da Revelação, sem a qual o homem apodreceria na abjeção turva e perversa do seu crime primitivo; como afirma Tertuliano: “O homem, condenado à morte desde a origem, arrastou para o seu castigo todo o gênero humano contaminado pelo seu sangue”. (Sermão da Alma, 1; c. IV)
[2] R. Amadou, em D. Ligou, Dicionário da Maçonaria, PUF, 1991, p. 783.
[3] “A gnose martinezista discerne e se apropria das coisas que são do domínio do espírito, disse Robert Amadou, o simbolismo leva a isso. Traça o plano da figura universal onde opera toda a natureza espiritual, maior, menor e inferior; onde as Imensidades Celeste e Temporal rodeadas pela Imensidade do Eixo do Fogo Central se comunicam, através da Imensidade Supra-Celeste, com a Imensidade Divina”. (R. Amadou, op. cit., p. 783).
[4] F. von Baader, Os ensinamentos Secretos de Martínes de Pasqually, Ed. Télétes, 1989, p. 11.