A ESSÊNCIA ESPIRITUAL DO REGIME ESCOCÊS RETIFICADO OU AS TEORIAS EQUIVOCADAS DE RENÉ GUÉNON SOBRE A DOUTRINA DE JEAN-BAPTISTE WILLERMOZ
Por Jean-Marc Vivenza
Ilustração de Caim e Abel em sacrifício, refletindo o conflito entre a tradição natural e a tradição divina.
Entramos hoje em uma nova era para o Regime Escocês Retificado, pois, de um lado, estamos encerrando um longo período em que suas teses foram duramente contestadas por algumas correntes da Maçonaria, especialmente pelos seguidores da herança guenoniana, e, de outro, por um justo retorno das coisas, somos agora nós, por nossa vez, que evidenciamos os erros das teses de René Guénon e sua incompatibilidade com os fundamentos doutrinários estabelecidos por Jean-Baptiste Willermoz.
Muitos ficaram surpresos, sem compreender o que está em jogo, ou simplesmente rejeitaram admitir os fatos relativos às inexatidões sustentadas por Guénon ao se expressar sobre o Regime Escocês Retificado. Durante décadas, em nome do universalismo, sofremos intensas críticas pelo fato de assumirmos uma via iniciática e cavaleiresca exclusivamente cristã. Hoje, não precisamos mais suportar passivamente os fortes ataques que nos são dirigidos; podemos responder, serena mas firmemente, que Guénon cometeu um erro retumbante, falhou gravemente, e, com ele, todos que deram crédito às suas teses de forma extremamente leviana.
Por que essa nova situação é importante? Nada menos porque nos permite entender melhor a validade de nossa ação, assim como perceber o caráter eminentemente vital do nosso papel dentro do mundo maçônico contemporâneo. Para ser conciso, resumirei de bom grado em poucas palavras, afirmando que esta clareza nos conduz a poder dizer que o Regime Escocês Retificado é uma via, ou mais exatamente, uma Ordem iniciática autônoma, coerente, completa, autossuficiente, que se considera assim, primeiramente por seu depósito doutrinário único, herdado, com incontestável legitimidade, de Martinez de Pasqually, por intermédio de Willermoz. Essa herança explica seu julgamento sobre a natureza “apócrifa” das demais correntes maçônicas. A Ordem encarna uma corrente que é um verdadeiro recurso providencial, no sentido de que visa, em nossos tempos turbulentos e desorientados, recristianizar, segundo novas bases e um método específico, as almas desejosas de buscar a Verdade.
De fato, o Retificado, constituído entre 1778 e 1782 com o objetivo de aperfeiçoar e reformar a antiga tradição escocesa, deve ser vivido de maneira imperativa e inegociável, permanecendo fiel às suas bases originais, sob pena de perder sua especificidade e seu “espírito” orientador em favor de uma concepção andersoniana. Tal concepção representa não apenas uma traição ao que Jean-Baptiste Willermoz quis constituir, mas também, e o que é mais grave, representa um risco considerável para o futuro e para a continuidade histórica da essência espiritual da “retificação”.
I. A NATUREZA DO REGIME ESCOCÊS RETIFICADO
Recordemos o que eu já quis responder em uma obra minha – que, pelo que sei, já está traduzida para o castelhano. Em primeiro lugar, e como uma exposição breve, os motivos da crítica a esta declaração inverossímil que afirma que o Rito Escocês Retificado, devido ao seu caráter exclusivamente cristão, estaria marcado, segundo René Guénon e seus discípulos, por um misticismo religioso que levaria seus membros a uma certa tendência à “exoterização”, e que estaria carente de chaves “operativas” capazes de permitir aos buscadores alcançar os últimos graus do “conhecimento” iniciático autêntico.
a) Um erro gerador de contínua incompreensão
No entanto, além de proferir uma crítica dessa natureza, nada trivial ao se tratar de uma sociedade iniciática que acolhe homens para que alcancem as fontes do conhecimento, René Guénon manterá, sobre o Regime Escocês Retificado, um erro considerável que infelizmente manchará todo o conjunto de seus critérios posteriores, impedindo-o de penetrar no cerne da essência iniciática do Regime. Qual é esse erro? Aqui está, exposto em algumas linhas pelo próprio Guénon: “O Regime Escocês Retificado não é uma metamorfose dos Elus Coëns, mas sim uma derivação da Estrita Observância, o que é totalmente diferente; e, embora seja verdade que Willermoz, devido à parte preponderante que teve na elaboração dos rituais de seus graus superiores, particularmente o de ‘Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa’, pôde introduzir algumas das ideias que extraiu da organização de Martinez, não é menos verdade que a maioria dos Elus Coëns o censuraram duramente pelo interesse que demonstrava, bem como pela preferência a outro rito, o que aos seus olhos era quase uma traição, assim como censuraram Saint-Martin por uma mudança de atitude de outra natureza.”
O erro de julgamento de Guénon não passou despercebido a Gerard van Rijnberk, que destacou o caráter categórico de tal afirmação, difícil de justificar em relação ao fundo doutrinário do Regime Escocês Retificado, o qual, visível e curiosamente, era totalmente desconhecido ou ignorado por aquele que desejava se expressar como mestre em temas de esoterismo e maçonaria. “O Sr. Guénon,” escreveu van Rijnberk, “reprova minha frase relativa à metamorfose willermoziana e martinista do martinismo. Ele assegura que há um equívoco a dissipar: ‘O Regime Escocês Retificado não é uma metamorfose dos Elus Coëns, mas uma derivação da Estrita Observância, o que é totalmente diferente’. Que observação surpreendente!”.
Assim, o grau secreto de Cav. Professo e, sobretudo, o de Grande Professo, que coroam a Ordem Interior do Regime Retificado, não seria nada além de simples Maçonaria Templária e não conteria em absoluto, de forma velada, embora evidente, a doutrina de Martinez? Van Rijnberk estava correto e prontamente percebeu a aporia que tornava caducos os argumentos contrários a ele, identificando imediatamente a enorme falha no raciocínio de Guénon e se surpreenderá com este monumental desconhecimento das Instruções da Profissão, sem as quais não é possível um verdadeiro entendimento do Regime Retificado e da natureza e perspectiva de seus trabalhos.
Entretanto, para se convencer da validade da análise de Gérard van Rijnberk, bastaria ler simplesmente Jean-Baptiste Willermoz, conforme evidenciado em sua carta destinada ao Príncipe Charles de Hesse, na qual declara claramente a existência de um vínculo doutrinário entre os Elus Coëns e as Instruções secretas que coroam a Ordem que acabava de fundar: “…é essencial,” escreve Willermoz, “que eu previna aqui Vossa Alteza Sereníssima, que os graus dessa Ordem [a Ordem dos Elus Coëns] contêm três partes: os três primeiros graus instruem sobre a natureza divina, espiritual, humana e corporal; e essa instrução é a base dos Grandes Professos…” (Carta ao Príncipe Charles de Hesse-Casel, 12 de outubro de 1781).
Como então, e por que, Guénon, com tanta determinação, considera necessário manter uma posição que contradizia e invalidava tudo? O que explica essa atitude tão estranha naquele que, em outras circunstâncias, soube realizar correções e modificações significativas quando necessário, mas que, de maneira inexplicável, neste caso específico, permaneceu firme, contra todas as evidências, sustentando julgamentos categóricos e equivocados?
b) Um trágico desconhecimento da estrutura interior do Regime Retificado
A solução, por assim dizer, para esta estranha incompreensão de Guénon e alguns de seus seguidores em relação ao Regime Escocês Retificado encontra sua explicação em uma grave confusão, que confirma um desconhecimento profundo e marcante da composição e estrutura interna do Regime Retificado, o que se evidencia claramente nestas linhas retiradas do artigo “Um projeto de Joseph de Maîstre para a união dos povos”, publicado por Guénon em março de 1927 na revista “Vers l’Unité”, em que ele afirma, surpreendentemente, ao falar da distribuição dos graus no seio do Regime: “Eis como essa distribuição parece se estabelecer: a primeira classe compreende as três classes simbólicas; a segunda classe corresponde aos graus capitulares, dos quais o mais importante e talvez até o único praticado de fato no Regime Escocês Retificado é o de Escocês de Santo André; finalmente a terceira classe é formada pelos graus superiores de Escudeiro Noviço e Grande Professo ou Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa”.
Diante dessas afirmações, torna-se imediatamente evidente para quem conhece, ainda que minimamente, o caráter distinto e separado do grau de Cavaleiro Benfeitor, do estado de Cavaleiro Professo e, mais adiante, do de Grande Professo, o enorme erro, a confusão incrível, de tratar esses três graus como um nível idêntico, ignorando assim os elementos iniciáticos específicos do importante e essencial fundo doutrinário que Willermoz introduziu na classe secreta dos Professos e Grandes Professos.
Essa vasta e lamentável ignorância terá consequências temíveis nas posições de Guénon, levando-o a sustentar teses radicalmente inexatas, uma vez que, infelizmente, partia de premissas falsas. A postura incompreensível de Guénon, cuja causa hoje conhecemos, sustentando um conjunto de julgamentos reiterados e extremamente parciais, parece ter um único objetivo visível: direcionar ataques a Jean-Baptiste Willermoz e ao Regime Escocês Retificado com a intenção de demonstrar seu suposto caráter não tradicional.
c) Realidade iniciática do Regime Retificado
Contrário ao que pensa René Guénon, o Regime Escocês Retificado representa uma notável continuidade em relação à doutrina dos Eleitos Coëns, uma continuidade que preserva essa última ao oferecer-lhe um marco organizativo que, com o tempo, desempenhou um papel protetor e salvador incomparável. Esse Regime, portanto, não apenas se apresenta como legítimo herdeiro da Ordem fundada por Martinez de Pasqually, mas também como o guardião de uma chama cuja mestria e “depósito” detém inquestionavelmente, orientada em todos os seus níveis e graus para a obra de reconciliação, tendo como objetivo central a “reintegração” do homem às suas primeiras virtudes e propriedades divinas.
Dessa forma, torna-se inquestionável que a Ordem dos Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa carrega uma base espiritual e uma herança histórica diretamente derivada dos ensinamentos de Martinez de Pasqually. Ignorar os elementos formais que recebemos de diversas fontes históricas disponíveis é recusar admitir que há uma relação profunda entre o Regime Escocês Retificado e a doutrina martinezista, evidenciada pela posse direta do Grande Professo. Essa ligação é ainda mais fortalecida pela ajuda ou estímulo benevolente possivelmente recebido de Louis-Claude de Saint-Martin, como evidenciam os termos de uma carta escrita pelo Filósofo Desconhecido ao reformador lionês em 19 de setembro de 1784.
II. ESSÊNCIA DO REGIME RETIFICADO E A NOÇÃO DE TRADIÇÃO
Outro aspecto absolutamente contraditório entre a doutrina do Regime Escocês Retificado e as ideias de René Guénon, possivelmente ainda mais radicalmente incompatível, refere-se à noção de “Tradição”. Willermoz, discípulo fiel de Martinez de Pasqually e perfeito cristão, interpreta essa tradição de forma muito distinta, ao menos diferente daquela sustentada pelo autor de O Simbolismo da Cruz. Poder-se-ia pensar que este segundo ponto é periférico em relação ao primeiro, e que a demonstração dos erros anteriores sobre a natureza do Regime Retificado já seria suficiente. No entanto, isso seria falso e imprudente, pois as críticas de Guénon ao movimento willermoziano são todas baseadas em uma teoria geral em radical oposição às concepções cristãs do Regime Retificado. Vamos agora examinar esse ponto, o que nos permitirá perceber a profunda separação entre as posições guenonianas e as concepções de Jean-Baptiste Willermoz, além do papel simbólico e espiritual fundamental desempenhado por Phaleg dentro do Regime, possibilitando-nos entender sua identidade intrínseca.
a) A Tradição primordial segundo Guénon
Para Guénon, as formas tradicionais de nosso presente Manvantara, ou era temporal, mantêm concretamente, embora de maneira indireta, um vínculo com a “Tradição primordial”. Essa Tradição, que ele qualifica de hiperbórea devido a sua origem “polar”, seria a Tradição fundamental que presidiria a fonte de difusão do Conhecimento sagrado no nosso ciclo atual. Essa Tradição chamada “primordial”, a mais antiga da humanidade, seria comum a todas as tradições autênticas e “ortodoxas”, cujos traços e sinais aparecem nos símbolos, ritos e mitos da Tradição universal.
Na visão guenoniana, a natureza “polar” da Tradição primordial confere-lhe um caráter central, ou seja, não se restringe às categorias clássicas para situar a origem de uma forma espiritual ou religiosa específica, que em nossa era se divide em Oriente e Ocidente. Assim, a Tradição primordial se expressaria através do simbolismo, uma linguagem universal que transcende as diferenças entre civilizações ou religiões, dada sua origem comum.
A Tradição primordial desempenha, portanto, um papel paradigmático para Guénon, na medida em que, na concepção cíclica, diferentemente da visão cristã, tudo parte de uma fonte de perfeição – do Princípio, o ponto de partida simples e unificado – em direção a um estado de dissolução, que marca o fim de um ciclo e o começo de outro, como explica a doutrina indiana do Sanâtana Dharma (Ordem Universal), a essência da “Unidade” original.
b) A Tradição segundo a religião cristã
Podemos imaginar facilmente o quanto tais concepções podem ser chocantes, sobretudo inadmissíveis para um discípulo de Cristo, que rejeitará aceitar, conforme critica Jean Tourniac, “qualquer aspecto que equipare a tradição cristã a outras tradições”. Vale ressaltar que a tradição cristã não se vincula a uma terra, a uma herança simbólica particular, mas a uma “Revelação” e um culto transmitidos, não por uma civilização, mas por uma linha de descendência: os Patriarcas, os Justos e os Profetas, culminando no Messias através do mistério da Encarnação de Cristo Jesus.
Para um cristão, a tradição cristã, ao se declarar detentora da Palavra revelada de Deus e unida ao Verbo, não pode ser apenas um “ramo” da Tradição primordial, mas representa o cerne, o núcleo da autêntica “Tradição”, aquela que possui o depósito da “Revelação Divina”, transmitida por Deus aos Patriarcas, Justos e Profetas.
É importante compreender, portanto, que do ponto de vista cristão, sustentado pelo Regime Escocês Retificado, o termo “Tradição” não se aplica indistintamente à herança simbólica ou mitológica da humanidade. Ele é reservado exclusivamente à “Revelação” que ocorreu de forma oral, sendo depois transcrita nas “Sagradas Escrituras”, nas quais Cristo, o Messias, é o cumprimento das promessas.
Guénon encontra dificuldades com a natureza “exclusiva” e não universalista da Revelação, na medida em que esta declara que somente Cristo purifica e liberta os homens do “pecado original”. Em sua visão, ele coloca a Palavra do Evangelho em uma relação de “subordinação” frente a uma metafísica considerada “não humana”, superior a todas as formas tradicionais. Ele afirma claramente que não pode aceitar a pretensão do cristianismo de deter, de forma exclusiva, um caráter sobrenatural e transcendente: “(…) sempre é a mesma questão, ele escreve: a afirmação de que o cristianismo possui o monopólio do sobrenatural e é o único com caráter ‘transcendente’, o que leva a considerar todas as outras tradições como ‘puramente humanas’, o que, de fato, vem a significar que não são tradições, mas se assemelham a ‘filosofias’ e nada mais (…) dito de outra forma, apenas o cristianismo seria uma expressão da Sabedoria divina; mas infelizmente são apenas afirmações (…) tudo isso é acompanhado de uma argumentação puramente verbal, que só pode parecer convincente para aqueles que já estão convencidos de antemão, valendo tanto quanto aquela empregada por filósofos modernos, com outras intenções, ao tentarem impor limites ao conhecimento e negar tudo que pertence ao domínio supra-racional”. Ao continuar com sua convicção, a confissão de Guénon, como conclusão de outro artigo, é de grande interesse, pois revela claramente o fundo de seu pensamento: “(…) nenhum entendimento é realmente possível, ele declara, com quem tem a pretensão de reservar a uma única forma tradicional, com exclusão de todas as demais, o monopólio da revelação e do sobrenatural”.
c) Incompatibilidade doutrinária entre o Regime Escocês Retificado e Guénon
Parece evidente, se nos detivermos um instante a refletir sobre isso, que a grande lacuna do pensamento guenoniano vem de seu completo esquecimento da dimensão antropológica da questão espiritual. O homem, para Guénon, está situado no centro de um turbilhão cíclico que lhe é quase externo, estranho. Dependente de leis cósmicas que o ultrapassam amplamente, ele jamais é questionado, em uma concepção que poderíamos quase definir como “mecanicista”, sobre a responsabilidade humana. Esse aspecto do problema, do ponto de vista metafísico, não deve ser ignorado, pois a doutrina dos ciclos pressupõe uma espécie de eternidade, de continuidade quase substancial do universo, ou dos universos.
Ora, o universo, ou seja, a totalidade absoluta dos mundos, à imagem de todas as coisas criadas, não é eterno; não possui permanência ontológica, é perecível, frágil, fugaz, sujeito à limitação, finito e mortal. Ninguém contestará que houve, no início da humanidade, uma comunicação de Deus aos homens, representando os fundamentos de uma Tradição original, de uma “religião primeira” cujos vestígios são perceptíveis e bem visíveis, embora profundamente degradados, nos diferentes povos.
Se essa primeira “Revelação”, não escrita, que foi objeto de comunicação de Deus aos Patriarcas, os pais da humanidade, de suas doutrinas e leis após a expulsão de Adão e Eva do Éden, se tornou o fundamento de uma Tradição primitiva que com razão podemos chamar de “Tradição Mãe”, conforme Louis-Claude de Saint-Martin, é necessário notar que essa Tradição logo se divide, desde o episódio relatado no livro do Gênesis, quando ocorre a separação entre o falso culto de Caim e aquele outro, abençoado pelo Eterno, celebrado por Abel, o justo. O culto de Caim, baseado unicamente na religião natural, era uma simples oferta de louvor desprovida de qualquer aspecto sacrificial, enquanto o culto de Abel, consciente de que após o pecado original já não era possível, nem permitido, reproduzir a forma anterior das celebrações edênicas, conferiu à sua oferta um caráter expiatório, que foi aceito e agradou a Deus, constituindo o fundamento da “Verdadeira Religião”, a religião sobrenatural e santa.
d) O sentido de “Phaleg” no plano tradicional
Assim, os dois cultos de Caim e Abel deram origem, desde a aurora da História humana, a duas tradições igualmente antigas ou “primordiais”, se quisermos utilizar esse termo guenoniano, mas absolutamente não equivalentes do ponto de vista espiritual. Daí a importância do nome “Phaleg” atribuído aos Aprendizes do Regime Retificado, com o objetivo de afastá-los da linhagem cainita, reprovada por Deus, e colocá-los sob os auspícios da Tradição abençoada e amada pelo Eterno.
Se permanecermos no simples critério temporal, como faz Guénon em sua concepção de Tradição, sem distinguir e iluminar o critério sobrenatural, então seria possível reunir essas duas fontes em uma falsa unidade, fazendo delas elementos comuns de uma “Tradição Primordial” monolítica e indiferenciada, situada na origem de todas as religiões do mundo, em igualdade de antiguidade e “dignidade”, merecendo o mesmo respeito e recebendo o mesmo caráter de sacralidade.
Mas é evidente e extremamente claro que há um grave erro em confundir em uma única “Tradição” duas correntes totalmente opostas, dois cultos radicalmente diferentes e antagônicos: um, o de Caim, voltado para a glorificação dos poderes da terra e da natureza (e, assim, dos demônios, que, sendo espíritos, são apenas “forças naturais”), com o objetivo de triunfar e dominar o homem autossuficiente. É a religião prometeica, expressa pela vontade de alcançar Deus por si mesmo (os frutos da terra, neste aspecto, simbolizam os antigos mitos pagãos). O outro culto, ao contrário, é o de Abel, fiel ao Eterno e aos seus santos mandamentos, consciente da irreparável falha que manchará toda a descendência de Adão, e que exige, por parte dos eleitos de Deus, uma soberana “operação” de reparação, a despeito dos inefáveis vestígios do pecado original dos quais o homem é portador, para ser reconciliado e purificado pelo Céu.
Assim compreenderemos por que Jean-Baptiste Willermoz, seguindo os sagazes conselhos do Agente Desconhecido, julgou necessário, em 5 de maio de 1785, por decisão ratificada pela Regência Escocesa e pelo Diretório Provincial de Auvergne, afastar o nome de Tubalcaim dos rituais Retificados, substituindo-o por Phaleg, reconhecido como o fundador das “justas e perfeitas” Lojas.
Tubalcaim representa, de fato, uma perigosa degeneração dos ofícios do fogo e dos ferreiros, encarnando os aspectos mais maléficos da metalurgia e da Arte Real por meio de uma prática desprovida de humildade e submissão a Deus: “pai de todos os forjadores de cobre e ferro.” (Gênesis, 4:22).
Há, portanto, entre Phaleg e Tubalcaim uma total contradição, uma distinção absoluta entre as famílias a que pertencem, uma significativa incompatibilidade que pareceu a Jean-Baptiste Willermoz que deveria ser claramente corrigida. Não lhe parecia adequado ver subsistir nos rituais do Regime Retificado uma referência a um personagem marcado pela reprovação, especialmente quando a intenção dos trabalhos de reforma realizados no Convento das Gálias em 1778 e no Convento de Wilhelmsbad em 1782 era situar o novo sistema como prolongamento da “Alta e Santa Ordem dos Eleitos do Eterno”, fazendo positivamente dos “Cavaleiros Benfeitores da Cidade Santa” os herdeiros distantes da linha dos justos e piedosos servidores do Eterno, alinhados na linhagem direta de Abel, Set e Sem.
e) A Tradição segundo Martínez de Pasqually e Willermoz
Conforme Martínez de Pasqually explica em seu Tratado da Reintegração, desde a origem não existe uma única Tradição, mas sim duas “tradições”, dois cultos, o que significa duas religiões: uma natural, baseada exclusivamente no ser humano, e outra sobrenatural, depositando todas as esperanças unicamente em Deus e Sua Divina Providência. A sequência dos eventos históricos não deixou de confirmar esse antagonismo constante, essa rivalidade e separação entre dois “caminhos” diferentes, em oposição permanente, tornando-os rigorosamente distintos e irreconciliáveis.
A posteridade de Abel, após sua morte, sendo ele a imagem viva da “Tradição” fiel à Palavra do Eterno, será sucessivamente representada pelos principais Patriarcas que foram os detentores e guardiões da Revelação Divina “primitiva”. Os nomes desses Patriarcas nos são revelados pelas Escrituras: Adão, Sete, Enos, Cainã, Maalaleel, Enoque, Matusalém e Lameque, pai de Noé. Eles transmitiram, sem alterar, a Tradição Divina que receberam, enriquecendo-a e desenvolvendo-a. Enquanto isso, em paralelo a essa pequena linhagem de Patriarcas que zelavam pela pureza das sagradas lições, a grande maioria dos homens era inspirada pela tradição falsa e natural de Caim, uma religião desviada e pervertida, produtora de vício, crime, impiedade, impudor e corrupção generalizada de costumes e valores.
A aparente abertura de Guénon em relação às tradições não-cristãs, à primeira vista, pode parecer generosa, mas há um projeto oculto nesta ideia de “Tradição primordial”. Em suas próprias palavras, Guénon descreveu a verdadeira essência desse enigma: “A tradição hindu e a tradição islâmica são as únicas que afirmam explicitamente a validade de todas as outras tradições ortodoxas; e, se assim é, é porque, sendo a primeira e a última no curso do Manvantara, devem integrar, ainda que sob formas distintas, todas as demais que surgiram no intervalo, a fim de possibilitar o ‘retorno às origens’, no qual o final de um ciclo volta ao seu início e que, no ponto de partida de outro Manvantara, manifestará novamente o verdadeiro Sanâtana Dharma.”
A ideia oculta de Guénon é a incorporação ou “integração” da tradição ocidental dentro da oriental, uma verdadeira “absorção”, pela qual a tradição ocidental seria dissolvida e retornada à sua “fonte” para que se cumprisse o último “retorno às origens”, prefigurando o fim do Manvantara atual e o surgimento de um novo ciclo.
Avaliando e confirmando sua convicção, e justificando o destino reservado ao cristianismo, Guénon não hesita em desprezá-lo: “… apesar das origens iniciáticas do cristianismo, este, em seu estado atual, certamente não é mais que uma religião, ou seja, uma tradição exclusivamente exotérica, sem outras possibilidades além das de qualquer exoterismo…”. Tal é a visão guenoniana, que subordina a Revelação cristã à religião cósmica reprovada por Deus.
O que fundamenta a essência da verdadeira e autêntica Tradição é o caráter justo e perfeito do culto celebrado ao Eterno. Se uma transmissão está corrompida desde sua origem, por mais antiga ou “primordial” que seja, mantém sua natureza viciada e não apresenta valor espiritual algum. Devemos, portanto, situar-nos humildemente sob uma Tradição santa e autêntica, enquanto que a tradição “apócrifa”, como nomeou Martínez de Pasqually, deve ser vigorosamente rejeitada como falsa e nutrida pela rebeldia perante Deus.
Ao se distanciar dessa tradição falsa, os Irmãos do Regime podem trilhar um caminho segundo o espírito que lhes concede o título significativo de “Bem-amados”, representando uma “separação pelo Senhor”, um afastamento do Mal, conforme simbolizado no nome Phaleg, dado a cada Aprendiz ao entrar na Ordem.
CONCLUSÃO
Podemos observar: a crítica às concepções guenonianas, especialmente relativas à noção de Tradição, nos obriga a compreender melhor nossos deveres ao assumirmos a herança de Willermoz. Nada é mais eficaz do que essas clarificações para nos permitir compreender aquilo a que os maçons Retificados pertencem sob o nome de “Tradição”, e o que os distingue de outras correntes iniciáticas.
Se temos conhecimento sobre o que é o Regime Escocês Retificado e sua essência, nossa relação com a ação iniciática será, evidentemente, transformada e iluminada, possibilitando-nos avaliar a responsabilidade que nos cabe na preservação do Rito e sua doutrina.
Possuímos, como franco-maçons originários da Reforma de Lyon, uma transmissão original conferida pela prática do Regime Escocês Retificado, cujos fundadores e referências nos são conhecidos, com convicções perfeitamente explícitas e princípios claramente identificados. É natural e legítimo que busquemos nos aproximar dessas fontes íntimas que nos foram dadas em nossa iniciação e generosamente oferecidas quando recebemos o “distinto título de Irmão”.
Há, neste esforço de coerência, a vontade de progredir em direção às bases autênticas de nossa iniciação. O esoterismo cristão é, portanto, o esoterismo dos “filhos de Deus”, filhos do único “Verbo Divino”, o verdadeiro “Oriente”, o que nos permite confiar nos magníficos “frutos” de nosso batismo e daqueles transmitidos em nosso caminho iniciático no Regime Escocês Retificado. Como declarou solenemente o Grão-Mestre do Grande Priorado das Gálias, Daniel Fontaine: “a iniciação passa acima de tudo, e a ela devemos consagrar nossa vida”. Este caminho iniciático, precioso, vamos continuar e construir juntos, para que as luzes do Regime Escocês Retificado e da Franco-Maçonaria cristã resplandeçam amplamente no futuro. Dessa obra comum seremos, estou absolutamente convicto, recompensados com fecundas bênçãos.
Segóvia, domingo, 28 de junho de 2009, na festa de São Irineu