Fonte original:
A DOUTRINA DO RER
Extrato de uma conferência de J. F. Var intitulada “Da Maçonaria Cristã à Maçonaria Retificada”. Cadernos azuis do G.P.D.G..
O Regime Escocês Retificado apresenta a particularidade notável e provavelmente única de ter a sua própria doutrina de iniciação, formulada explicitamente e ensinada metodicamente grau por grau. Dessa forma, ao mesmo tempo em que seus membros avançam no caminho iniciático, recebem um ensino teórico em forma de discurso pedagógico em relação a esta mesma iniciação.
Esta doutrina da iniciação maçônica está intrinsecamente ligada à natureza e ao destino do homem e em perfeita concordância com o cristianismo que lhe é conatural, permitindo a quem a ela adere viver a plenitude do processo iniciático na plenitude da fé cristã.
A origem desta doutrina está nos ensinamentos de Martines de Pasqually, particularmente no seu ‘Tratado sobre a Reintegração dos Seres’, substrato doutrinário de todo o conjunto de retificação que Willermoz adaptou à atual estrutura e apresentação da Ordem.
A doutrina retificada é resumida nos seguintes quatro ensinamentos:
Primeiro:
O homem foi criado à imagem e semelhança divina e, no seu glorioso estado primitivo, gozou da imortalidade e da beatitude perfeita porque estava em comunhão direta e constante com o Criador, em unidade com ele. É isso que expressa o adjetivo ‘glorioso’, que deve ser tomado no sentido mais amplo em que aparece nas Escrituras, onde a glória revela a presença imediata e luminosa de Deus (na Maçonaria a palavra ‘glória’ tem este significado: Para cada Maçom, trabalhar para a ‘Glória do Grande Arquiteto do Universo’ é trabalhar na presença do Deus Criador).
O primeiro homem, revestido com a luz divina, isto é, participando das virtudes e dos poderes que estão na essência divina (o que a teologia cristã oriental chama de energias incriadas), participando sem ser ele mesmo da essência divina, tinha como destino ser o rei deste universo criado por Deus.
Segundo:
Este homem, por decisão do seu livre arbítrio, desviou-se e separou-se do seu Criador e caiu. Como consequência, ele perdeu a semelhança divina. Contudo, a ‘imagem’ divina subsiste nele inalterada, porque a marca de Deus é inalterável. Esta imagem está deformada, tornou-se algo disforme, e é isso que simboliza a passagem do Oriente para o Ocidente, da luz para as trevas, da unidade para a multiplicidade: Adão expulso daquele lugar de luz e paz total (pax profunda), que era o Paraíso terrestre; e compreendamos que o Paraíso terrestre não era realmente um lugar, mas um estado de ser.
Este homem separado de sua origem, que é Deus, de seu verdadeiro Oriente, é chamado por Willermoz, influenciado por Martines de Pasqually, de o “homem em privação”. E esta privação é absoluta. Isto implica um duplo castigo, um castigo exigido pela justiça divina, mas ao qual o homem condenou a si mesmo. O primeiro é que o homem não está em unidade com Deus, em comunicação imediata e constante com Ele. Isto é designado nos textos antigos como morte intelectual, tendo em conta que na linguagem da época intelectual significava ‘espiritual’, ‘incorpóreo’; Diríamos hoje que o homem caído está num estado de ‘morte espiritual’.
Mas ele também sofreu um segundo castigo. A mutação ontológica radical que a queda do homem lhe causou também se manifesta no fato de que o corpo glorioso com o qual ele foi inicialmente revestido, um corpo de luz, corpo espiritual, foi transformado em corpo de matéria sujeito à corrupção e à morte; de modo que, condenado à morte espiritual, também está condenado à morte corporal.
Neste estado, o homem a partir de agora se encontra dotado de uma dupla natureza: a sua natureza espiritual, graças à qual continua a ser imagem de Deus, e que a preservou; e a natureza corporal animal que o fez cair e que o torna semelhante aos animais terrestres.
E ele é, portanto, vítima de tormentos horríveis. Como ser espiritual, aspirando por sua própria natureza à unidade com Deus, ele sofre indescritivelmente por sua ruptura com Ele. Como ser animal, ele se tornou escravo de suas sensações e necessidades físicas, em um joguete das forças e elementos materiais. Em suma, como ser duplo, espiritual e animal, ele é dilacerado e desmembrado pelo antagonismo entre as aspirações e tendências contrárias de suas duas naturezas.
Trágica, então, é a condição atual do homem.
Terceiro:
Contudo, o Regime Retificado nos ensina que esta privação absoluta, que se tornou definitiva segundo a justiça divina, não será assim na realidade devido a causa da misericórdia ou clemência divina, que aparece no momento em que o homem se arrepende. Agora, arrepender-se é reencontrar-se a si mesmo, é recuperar-se. É afastar-se das trevas e voltar-se novamente para o Oriente, onde se encontra a Luz. É colocar-se em posição de ascender às suas fontes, à sua origem. É aí que o trabalho de iniciação é verdadeiramente possível. Pois a iniciação é um dos meios utilizados pela misericórdia divina (e isto, desde o primeiro momento da queda) para permitir ao homem recuperar o seu estado original, restabelecendo nele a semelhança com a imagem divina, restaurando nele a conformidade com o protótipo, do homem com Deus.
Por esta razão afirma-se insistentemente que o verdadeiro e único objetivo das iniciações é preparar os iniciados para descobrirem o único caminho que pode levar o homem ao seu estado primitivo e restaurar os seus direitos perdidos. Louis-Claude de Saint Martin, em uma de suas obras, explica que o objetivo da iniciação é anular a distância entre a Luz e o homem, ou aproximá-lo da sua origem, restituindo-o ao mesmo estado onde estava no princípio.
Compreendereis agora em que consiste esta união necessária entre a queda do homem e a iniciação a que me referi anteriormente. A iniciação é uma consequência da queda; consequência não fatal, mas providencial; não forçada, mas desejado pela misericórdia divina para neutralizar a queda e anular os seus efeitos. É um auxílio da Providência ao homem, que nunca lhe faltou ao longo da sua história, e por essa razão as sucessivas formas que a iniciação adotou ao longo dos tempos (e a Maçonaria é uma delas) foram em relação às vicissitudes temporais do homem, que está constantemente dividido entre a queda e o arrependimento.
Você também compreenderá, ao mesmo tempo, não apenas a utilidade, mas a necessidade de um ensinamento relacionado à iniciação. O seu objetivo é tornar o homem consciente, por um lado, do seu estado atual e, por outro, do estado original que era, e que pode ser novamente o seu. O objetivo é evidente: produzir no homem (no iniciado) uma mudança de estado de consciência, de modo e maneira que permita a possibilidade de mudança no seu estado de ser que o trabalho iniciático deve realizar. Os dois (estado de consciência e estado de ser) estão interligados.
É por isso que o rito trata do tema da construção do templo, de sua destruição e de sua reconstrução, que é a transposição para uma forma construtiva do tema da semelhança de imagem, sucessivamente perdida e depois recuperada, uma vez que, em última análise, o templo nada mais é do que o próprio homem.
Quarto:
Há um quarto ensinamento com o qual terminaremos e que de todos é o mais essencial: Pode o homem operar por si mesmo esta restauração, esta reintegração no seu estado primitivo e nos direitos que perdeu? Absolutamente não. Estaria, por sua vez, assumindo a culpa por um empreendimento orgulhoso semelhante ao que causou a sua queda original. Esta reintegração, isto é, este regresso à integridade primeira, requer a mediação de um ser que, como o homem, é dotado de uma dupla natureza, uma parte espiritual e uma parte corporal. Porém, diferentemente do homem atual, cujas duas naturezas estão corrompidas pela queda, neste ser ambas estão num estado de pureza, de inocência e de perfeição gloriosa como estavam inicialmente no homem.
Entendereis agora de quem se trata e quem é aquele a quem nossos textos chamam de Mediador Divino. Os textos são, quanto à sua identidade, perfeitamente claros:
“(…) Todas as relações entre a misericórdia divina e os culpados foram aniquiladas e a atual desgraça do homem seria inexplicável se esta misericórdia não tivesse usado um tonificante infinitamente poderoso para levantar o homem da sua queda fatal e colocá-lo de volta no lugar que era seu primeiro destino.”
Não ignoreis qual foi este tonificante. Na verdade, quem, além de um ser que não seja Deus, mas que participa de sua essência, poderia acorrentar o poder daquele que subjugou o homem?
“Imediatamente após o crime do homem, este poderoso agente veio manifestar sua ação vitoriosa sobre os culpados no templo universal; a manifestou especialmente no tempo a favor da posteridade do homem e para vergonha de seu inimigo, unindo a sua Divindade à humanidade; em suma, não cessa de se manifestar em todos os cantos do Universo. Aqui, meu querido Irmão, estão os auxílios divinos e eficazes que o homem, através do seu arrependimento, transmitida à sua posteridade e na qual nada pode participar se não agir em nome e em unidade com este Agente reconciliador universal.”
É por isso que, ao final da iniciação maçônica, o que o Regime Retificado oferece para que seus membros contemplem não é um renascimento, mas uma ressurreição. Devemos notar neste sentido que revelar a ressurreição de Cristo no final da iniciação não é exclusivo do Regime Retificado; isto também é encontrado em outros sistemas, tanto franceses como ingleses. A particularidade deste Regime é, no entanto, a de incluí-la numa perspectiva metafísica e ontológica coerente, forte e concretamente aplicável ao homem.
É também por isso que, uma vez atingido este objetivo, o templo sucessivamente construído, destruído e reconstruído, desaparece, como desapareceu o templo de Salomão, sendo o objetivo final a Jerusalém Celestial, a Cidade Santa onde não existe mais templo, pois, como diz o Apocalipse (21:22), o Senhor Todo-Poderoso é o Templo, assim como o Cordeiro. Com efeito, não esqueçamos, o templo que verdadeiramente nos preocupa é o homem, e o objetivo último do homem é a identificação com o “templo não feito pela mão do homem”: o Cristo ressuscitado.
Por fim, é por isso que a Ordem é cristã e não está apenas impregnada de um vago cristianismo. Isto justifica que só possa admitir cristãos, isto é, homens que professem a fé em Cristo. Esta seleção, ou esta eleição, não obedece a nenhuma outra razão que não a necessidade metafísica acima referida. Porque a iniciação tal como Willermoz a concebe, segundo os ensinamentos de Martines, e que ele nos legou, não funciona de outra forma, não pode funcionar de outra forma; e, para usar uma passagem já citada, constitui um auxílio divino e eficaz (…) na qual ninguém pode participar se não agir em nome e em unidade com este Agente reconciliador universal que é o Cristo. Agora, como podemos agir em nome e em unidade com Cristo se não temos fé Nele?